Assustadoramente pacífico, verídico!

“Ademirao, vc tem que entender que você (nós?) é esquisito!”

Foi isso que o ghs me disse, assim mesmo, na lata. Nenhum branco havia tido coragem de me dizer isso nos meus 40+ anos de convivência na branquitude. Muito menos teriam eles a sofisticação de dizer de forma tão direta e carinhosa. Só mesmo um negro pra conseguir colocar tanto carinho e honestidade avassaladora em uma frase. A gente chama isso de "de dar a real".

Eu queria começar esse texto com minha esquisitice pq ela tem a ver com o medo que os outros sentem de mim e isso se relaciona muito bem com um tópico do meu curso de dreadlocks em que a Célia me dizia que norte americanos e europeus estavam ‘limpando’ a palavra dreadlocks, utilizando apenas locks para se referir ao artesanato que carregamos na cabeça, sem a a parte "assustadora" (dread), esquisita, da palavra dreadlocks. Obviamente ela e eu gastamos mais tempo rindo dessa cambada de sem noção, perdidos em assepsia ocidental, do que discutindo questões lexico-semanticas da palavra.

É risivel o esforco de limpeza, pq o objetivo em se utilizar dreadslock é exatamente ficar assustador, ou com diria eufemisticamente o sábio Samone: rústico. Ninguém quer dreadlocks limpinho, bonitinho, alisado, na capa da revista semanal. Quem quer, não deveria estar  usando, para isso deveriam fazer um penteado.


Agora mudando de pau pra cavaco - pra que ao final desse texto você entenda bem o samba que estou construindo aqui - no último fim de semana tive uma experiência que ilustra perfeitamente os efeitos da “a real” do ghs e os ensinamentos da bruxa madrinha Célia e do sábio Samone.


Estava eu a caminho da casa de Célia - meio esmolambado, confesso - quando vi uma mulher que estudou comigo durante o segundo grau. Como eu estava na good vibes, decidi mexer com a dita-cuja, afinal de contas, quem pode estar de xico em pleno Arraial D’Ajuda? A resposta é fácil: uma mulher branca com medo.

- Olá, tudo bem? Seu nome é Gisele, certo? Você é de BH, né?

Ela, com toda sua cara branca, seu medo, seu susto, mentiu, disse que não se chamava Gisele, e imediatamente virou as costas, assustada, e desviou a rota. Isso tudo mesmo estando em uma praça lotada em Arraial d’ajuda (lugar de turista, impossível de se cometer qualquer ato de violência ou crime) e um marido que dava dois de mim tanto em altura quanto em largura. Um branco grande e gordo.

Mas mesmo assim decidi fazer minha cena de pretinho gentil:

- Vc é de BH, né? Estudou no Promove, certo? Acho que foi lá...

Acho que o nome de uma escola particular de Belo Horizonte abre um espaço fora da zona de medo dos brancos e ela conseguiu se abrir:

- Sim sou de BH, mas acho que foi no Instituto..., não no Promove.

- Ah, sim, isso mesmo! Seu nome é Gisele, né?

- Sim. Ela respondeu com um sorriso de vergonha pois sabia muito bem quem eu era, desde o início.

Dai seguiu-se uma resposta super legal do filho dela, mó gentil (algumas crianças brancas ainda não aprenderam o medo), explicando que ela mentia o nome e isso e aquilo... eu só pensei: “Tá bão... vou fingir que não entendi o que aconteceu”.


Acho que eu não preciso fazer toda a análise racial aqui, né? Nem explicar todo o samba, né? Tá fácil, né?


Por outro lado, nesse momento, leitor, a parte branca da sua alma, deve estar pensando: mas, Ademir, você já é esquisito, ainda coloca dreads, e ainda aborda uma mulher branca aleatoriamente na rua.... você não faz por onde! E eu pergunto, deveria eu ser outra pessoa para não causar medo? deveria me retrair? não tentar contato? o medo é de quem? Dela ou meu? Parte da libertação é se responsabilizar pelos próprios sentimentos, brancos. #ficadica.


É sempre nosso papel, dos negros, vencer essa barreira criada pelas brancas e seus maridos assustados dentro do condomínio mental deles. Mesmo estando nós em posição muito menos privilegiada, é nosso papel bater na porta e tentar conversa, e ainda assim ser recebido com mentira e descaso. Brancos não se dão ao trabalho, não arriscam, não se expõem. Parece que a paz deve ser implementada pelos outros, eles não tem interesse no trabalho da paz. Querem a segurança a qualquer custo dentro dos seus condomínios fisicos e mentais.

Pobres brancos, nunca terão paz. Nunca. Vão ter que implementar artilharia antimíssil e continuar sofrendo de ansiedade e medo dentro do seu bunker mental. Eles estão perdidos num universo de medo, isolados em sua autorreferência.


A pergunta que fica prá nós negros é: pq insistir num contato tão difícil, tão intrincado, tão empecilhado? Pq eu parei pra conversar com ela? Fanon já respondeu, certo? Ele já explicou como a branquitude nos causa um encantamento, e a gente se aventura em espaços que talvez devêssemos nos resguardar. Olhando agora, eu preferiria nunca ter tentado entrar em contato com ela. Desnecessário. Mas a possiblidade de contato parece que brilhou meus olhos. É preciso desencantar-se.

O interessante é que uns dias antes estava contando pra Célia que estava pensando em guardar meus dreads por um tempo (e depois recolocar) para fazer um blackpower legal, mas depois do incidente fiquei com vontade de fazer dread até no cabelo do cú e usar cueca curta pra assustar ainda mais.

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